A Criança é a personificação do reino de Deus


Essa semana alguns programas de TV mostraram uma cena chocante, um pai espancando o filho como se fosse um lutador de MMA dentro de um octógono com um adversário igual. O primogênito cansado de assistir e sofrer esse suplício filmou a tortura do irmão de um celular. Com o flagrante o pai foi preso, porém solto em seguida após o pagamento da fiança.

O vídeo mostrou uma criança sendo assassinada em vida, aos poucos, mais ainda assim o pai foi liberado. Os hematomas deixados não foram somente no corpo, mas na alma dessa criança. Existe uma omissão muito grande de nosso poder público em relação aos nossos pequenos. Essa nossa imprudência tem gerado subnutridos de alma, que quando adultos tornam-se dispersos no mundo. 

Ainda hoje a criança não é levada a sério, mesmo com toda nossa “evolução cultural” as vozes dos pequenos ainda são cerceadas. Lembro-me que no final de 2008 duas crianças, que foram ao conselho tutelar reclamar maus tratos, foram esquartejadas pelo pai e a madrasta após serem devolvidas a família. 

Estamos no século XXI mais nossa mentalidade é a mesma de séculos atrás, parece que qualquer atitude tomada em favor da criança causa um espanto. Quando Jesus tomou uma atitude em relação a crianças surpreendeu até mesmo seus discípulos, era algo novo e inesperado, em nenhum lugar da literatura judaica as crianças eram postas como modelos para os adultos, não muito diferente de hoje, o credo era que somente pelo conhecimento e a obediência à lei era possível alcançar a “salvação”.

Hoje mesmo podemos nos perguntar se os cristãos desde então tem entendido completamente essas ações e afirmações surpreendentes. Qual o sentido das crianças serem modelos a ser seguido e o que significa receber o reino de Deus como uma criança?

Jesus, aproveitando-se da presença de alguns fariseus, utiliza a típica fórmula judaica sobre o que é necessário para entrar no reino de Deus e a inverte ao declarar que não é o que funciona para a lei que é exigida para se entrar, mas, em vez disso, “quem não receber o reino de Deus como uma criança nunca entrará nele”.

Não era exigido que as crianças seguissem a Lei, muito menos previsto que elas a cumprissem ou entendessem, Jesus desafia a percepção dos adultos que estão sob obrigação da Lei e a cumprem.

É importante ressaltar também que a idéia de entrar no reino de Deus como uma criança, pode significar, “alguém que depende unicamente do favor divino”. A interpretação faz certo sentido na descrição das crianças nessa citação como alguém que não faz nada para obter a benção de Deus: são trazidas a ele, que as toma em seus braços e as abençoa. (Mc 10.15-16)

Se minha hermenêutica estiver correta, então nessa passagem Jesus ensina que os adultos devem se tornar como crianças ao renunciar à lei como base para entrar no reino de Deus e em vez disso, se apoiar simplesmente na dependência da misericórdia de Deus.

A criança aprende rápido porque não tem medo de errar, elas não teorizam, são livres. É claro que sua “liberdade” não as permite ditar novos conceitos, mas sua imaginação e inocência as libertam do julgo do sistema.

Nota-se a identificação de Jesus com as crianças e que elas tem o padrão de espiritualidade desejado por ele. As crianças nos humanizam, apresentam de forma gritante as virtudes dadas por Deus aos seres humanos. Elas aprendem brincando, elas priorizam os relacionamentos.

“É na criança onde a humanidade consegue concentrar o melhor daquilo que a graça comum tem emprestado a ela na tentativa de dar tempo para a nossa reversão, para a nossa salvação. Os valores que aparecem na criança são os valores que Deus deseja resgatar no ser humano... Nós os adultos, nos perdemos muito de Deus. Perdemos muito da fé. Não conseguimos mais crer como uma criança crê. Não conseguimos nos jogar nos braços de Deus como uma criança se joga nos braços do Pai. Então, vamos aprender fé com as crianças. Vamos aprender confiança com elas. “Vamos aprender dependência com a criança.” (Pr. Ariovaldo Ramos) 

Precisamos incitar uma observação mais atenta e mais sensível da criança e demonstrar a necessidade e possibilidade de aprendizado sobre o reino de Deus a partir delas e com elas. Concordo com Luiz Sayão quando escreveu que ”A criança é tão especial que Deus resolveu invadir a história humana na figura de um recém nascido. Em vez de descer diretamente do céu, ou de chegar repentinamente com um exército celestial para implantar seu reino.

A primeira coisa que se pondera ao descrever um recém nascido ou uma criança é sua fraqueza, pequenez, vulnerabilidade e dependência. Isso mostra que o verdadeiro poder de Deus está, mas mãos dos indefesos. O perfeito louvor (Mt 21.16) é cantado por aqueles que ainda não falam. A glória e o reino de Deus são anunciados sem palavras. Um Deus-menino não guerreia, não machuca, somente ama, se entrega e confia. E todo aquele que rejeita, agride, maltrata ou viola a inocência de um desses pequeninos o faz com próprio Deus.

O reino de Deus pertence aqueles que se tornam como crianças. Mas que reino é esse?
A melhor forma de descreve-lo não é como um lugar geográfico, mas como a maneira que Deus age.

Por Leonardo Pessoa

O Pastor herege - Revista Carta Capital

O pastor herege“Deus nos livre de um Brasil evangélico”, diz o religioso Ricardo Gondim, crítico dos movimentos neopentecostais. Por Gerson Freitas Jr. Foto: Olga Vlahou 

“Deus nos livre de um Brasil evangélico.” Quem afirma é um pastor, o cearense Ricardo Gondim. Segundo ele, o movimento neopentecostal se expande com um projeto de poder e imposição de valores, mas em seu crescimento estão as raízes da própria decadência. Os evangélicos, diz Gondim, absorvem cada vez mais elementos do perfil religioso típico dos brasileiros, embora tendam a recrudescer em questões como o aborto e os direitos homossexuais. Aos 57 anos, pastor há 34, Gondim é líder da Igreja Betesda e mestre em teologia pela Universidade Metodista. E tornou-se um dos mais populares críticos do mainstream evangélico, o que o transformou em alvo. “Sou o herege da vez”,  diz na entrevista a seguir.


CartaCapital: Os evangélicos tiveram papel importante nas últimas eleições. O Brasil está se tornando um país mais influenciável pelo discurso desse movimento?
 Ricardo Gondim: Sim, mesmo porque, é notório o crescimento do número de evangélicos. Mas é importante fazer uma ponderação qualitativa. Quanto mais cresce, mais o movimento evangélico também se deixa influenciar. O rigor doutrinário e os valores típicos dos pequenos grupos se dispersam, e os evangélicos ficam mais próximos do perfil religioso típico do brasileiro.
CC: Como o senhor define esse perfil?
RG: Extremamente eclético e ecumênico. Pela primeira vez, temos evangélicos que pertencem também a comunidades católicas ou espíritas. Já se fala em um “evangelicalismo popular”, nos moldes do catolicismo popular, e em evangélicos não praticantes, o que não existia até pouco tempo atrás. O movimento cresce, mas perde força. E por isso tem de eleger alguns temas que lhe assegurem uma identidade. Nos Estados Unidos, a igreja se apega a três assuntos: aborto, homossexualidade e a influência islâmica no mundo. No Brasil, não é diferente. Existe um conservadorismo extremo nessas áreas, mas um relaxamento em outras. Há aberrações éticas enormes.

CC: O senhor escreveu um artigo intitulado “Deus nos Livre de um Brasil Evangélico”. Por que um pastor evangélico afirma isso?
RG: Porque esse projeto impõe não só a espiritualidade, mas toda a cultura, estética e cosmovisão do mundo evangélico, o que não é de nenhum modo desejável. Seria a talebanização do Brasil. Precisamos da diversidade cultural e religiosa. O movimento evangélico se expande com a proposta de ser a maioria, para poder cada vez mais definir o rumo das eleições e, quem sabe, escolher o presidente da República. Isso fica muito claro no projeto da Igreja Universal. O objetivo de ter o pastor no Congresso, nas instâncias de poder, é o de facilitar a expansão da igreja. E, nesse sentido, o movimento é maquiavélico. Se é para salvar o Brasil da perdição, os fins justificam os meios.

CC: O movimento americano é a grande inspiração para os evangélicos no Brasil?
RG: O movimento brasileiro é filho direto do fundamentalismo norte-americano. Os Estados Unidos exportam seu american way oflife de várias maneiras, e a igreja evangélica é uma das principais. As lideranças daqui leem basicamente os autores norte-americanos e neles buscam toda a sua espiritualidade, teologia e normatização comportamental. A igreja americana é pragmática, gerencial, o que é muito próprio daquela cultura. Funciona como uma agência prestadora de serviços religiosos, de cura, libertação, prosperidade financeira. Em um país como o Brasil, onde quase todos nascem católicos, a igreja evangélica precisa ser extremamente ágil, pragmática e oferecer resultados para se impor. É uma lógica individualista e antiética. Um ensino muito comum nas igrejas é a de que Deus abre portas de emprego para os fiéis. Eu ensino minha comunidade a se desvincular dessa linguagem. Nós nos revoltamos quando ouvimos que algum político abriu uma porta para o apadrinhado. Por que seria diferente com Deus?

CC: O senhor afirma que a igreja evangélica brasileira está em decadência, mas o movimento continua a crescer.
RG: Uma igreja que, para se sustentar, precisa de campanhas cada vez mais mirabolantes, um discurso cada vez mais histriônico e promessas cada vez mais absurdas está em decadência. Se para ter a sua adesão eu preciso apelar a valores cada vez mais primitivos e sensoriais e produzir o medo do mundo mágico, transcendental, então a minha mensagem está fragilizada.

CC: Pode-se dizer o mesmo do movimento norte-americano?
RG: Muitos dizem que sim, apesar dos números. Há um entusiasmo crescente dos mesmos, mas uma rejeição cada vez maior dos que estão de fora. Hoje, nos Estados Unidos, uma pessoa que não tenha sido criada no meio e que tenha um mínimo de senso crítico nunca vai se aproximar dessa igreja, associada ao Bush, à intolerância em todos os sentidos, ao Tea Party, à guerra.

CC: O senhor é a favor da união civil entre homossexuais?
RG: Sou a favor. O Brasil é um país laico. Minhas convicções de fé não podem influenciar, tampouco atropelar o direito de outros. Temos de respeitar as necessidades e aspirações que surgem a partir de outra realidade social. A comunidade gay aspira por relacionamentos juridicamente estáveis. A nação tem de considerar essa demanda. E a igreja deve entender que nem todas as relações homossensuais são promíscuas. Tenho minhas posições contra a promiscuidade, que considero ruim para as relações humanas, mas isso não tem uma relação estreita com a homossexualidade ou heterossexualidade.

CC: O senhor enfrenta muita oposição de seus pares?
RG:  Muita! Fui eleito o herege da vez. Entre outras coisas, porque advogo a tese de que a teologia de um Deus títere, controlador da história, não cabe mais. Pode ter cabido na era medieval, mas não hoje. O Deus em que creio não controla, mas ama. É incompatível a existência de um Deus controlador com a liberdade humana. Se Deus é bom e onipotente, e coisas ruins acontecem, então há algo errado com esse pressuposto. Minha resposta é que Deus não está no controle. A favela, o córrego poluído, a tragédia, a guerra, não têm nada a ver com Deus. Concordo muito com Simone Weil, uma judia convertida ao catolicismo durante a Segunda Guerra Mundial, quando diz que o mundo só é possível pela ausência de Deus. Vivemos como se Deus não existisse, porque só assim nos tornamos cidadãos responsáveis, nos humanizamos, lutamos pela vida, pelo bem. A visão de Deus como um pai todo-poderoso, que vai me proteger, poupar, socorrer e abrir portas é infantilizadora da vida.

CC: Mas os movimentos cristãos foram sempre na direção oposta.
RG: Não necessariamente. Para alguns autores, a decadência do protestantismo na Europa não é, verdadeiramente, uma decadência, mas o cumprimento de seus objetivos: igrejas vazias e cidadãos cada vez mais cidadãos, mais preocupados com a questão dos direitos humanos, do bom trato da vida e do meio ambiente.